É na foz do Guadiana, olhando para um lado e para o outro deste «Grande Rio do Sul», que podemos testemunhar uma herança cultural que sublinha a importância geoestratégica desta área apetecível para os, outrora, reinos inimigos, piratas e corsários. Fronteira natural entre Portugal e Castela, a foz do Guadiana constituiu uma autêntica porta de entrada e de saída por onde circulavam produtos de e para destinos da Expansão Ibérica, como o Norte de África ou as Índias Ocidentais. Em ambas as margens foram edificados sistemas defensivos com o objectivo de defender as populações das guerras e dos ataques do corso e da pirataria, chegando aos nossos dias interessantes vestígios deste património militar edificado, de onde se destacam castelos, fortes, torres e outros elementos defensivos que convidamos a visitar ao longo de um roteiro que nos preenche o imaginário.
CACELA VELHA VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO
Começamos esta rota a Oeste da Eurocidade do Guadiana, pela bela e histórica vila de Cacela Velha, no concelho de Vila Real de Santo António, e propomo-nos a uma viagem no tempo e na História. Localizada no cimo de uma arriba, encontra-se frente a um ecossistema valioso, uma extensa área de ilhas barreira interpostas entre a ria Formosa e oceano. É através da estrutura urbana, elementos distintivos da arquitetura e construção, bem como materiais arqueológicos exumados, que atestamos que por aqui passaram romanos e islâmicos e que Cacela Velha teve forte inserção no mundo mediterrânico.
Cacela Velha, Qast’alla islâmica, também conhecida por ser a terra natal do poeta berbere Ibn Darraj al-Qastalli (958-1030), foi, entre os séculos X e XIII, um porto costeiro do Garb al-Andalus e um núcleo urbano importante na região. As escavações arqueológicas que foram realizadas no sítio do Poço Antigo, localizado fora de muralhas, puseram a descoberto, sob um cemitério cristão, vestígios de um bairro residencial islâmico do período almóada (séculos XII e XIII). No Largo da Fortaleza identificaram-se estruturas da alcáçova. Segundo os investigadores, Cacela atingiu o seu apogeu durante o período almóada, afirmando-se como importante entreposto militar e um próspero núcleo urbano, beneficiando da exploração dos recursos naturais na sua envolvente.
Conquistada aos mouros em 1240, por D. Paio Peres Correia, foi sede de concelho até 1775, data em que o Marquês de Pombal ordena a sua extinção e a integração do seu termo no novo concelho de Vila Real de Santo António. Apesar de por aqui se ir registando uma decadência demográfica, manteve-se sempre, e até aos dias de hoje, como centro religioso, com vocação de defesa e controlo costeiro. Na atualidade, a vila de Cacela Velha preserva um valioso património. Nesta viagem, comecemos pela Igreja de Nossa Senhora da Assunção. Construída no séc. XVI, e muito atingida pelo terramoto de 1755, foi reedificada quarenta anos depois. Destacam-se o belíssimo portal principal renascentista e a porta lateral tardo-gótica. No interior, de três naves, merece atenção o altar-mor e a capela quinhentista com a N. Sra dos Mártires. Caminhando para nascente encontramos a Fortaleza de Cacela Velha, com planta trapezoidal e baluartes com guarita nos ângulos. Existem referências a um hisn (fortaleza rural) no século X. Era daí que se controlavam, no período islâmico, as embarcações que entravam na ria em direção às cidades de Tavira e Faro. A fortaleza quinhentista é referenciada em fontes escritas e cartografía dos séculos XVI e XVII. Sofreu grandes danos no terramoto de 1755, vindo a ser reconstruída no final do séc. XVIII, no reinado de D. Maria I.
Em torno do núcleo histórico subsistem troços da muralha que delimitava a povoação no período islâmico, sucessivamente reconstruída em épocas posteriores.
VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO
Seguimos para Vila Real de Santo António, que fica apenas a 14 Km. Um pouco a sul do atual centro histórico existiu em tempos Santo António de Arenilha, lugar frequentado por piratas e corsários. No que ao contrabando diz respeito, ali eram traficados os escravos trazidos de África em transações que escapavam ao controlo do Estado e que tinham como destino o mercado castelhano. Foi, portanto, a circulação de mercadorias e produtos contrabandeados que desde cedo atraiu a atenção da pirataria e dos corsários patrocinados pelos Estados adversários. Vivia-se por então numa época de grande turbulência, sendo que a consequente evasão dos impostos adensou os motivos que levaram o coroa portuguesa a tomar medidas e a ordenar esta zona da fronteira. Se recuarmos até ao ano de 1513, em que foi edificada a vila de Arenilha, percebemos a importância do Algarve no abastecimento e defesa das conquistas em África, sendo, por isso, determinante o povoamento de terras como esta vila piscatória localizada na foz do Guadiana. Após o despovoamento de Santo António de Arenilha, coube ao marquês de Pombal restaurar a sede de concelho através da edificação de Vila Real de Santo António, construída sob os cânones do urbanismo iluminista. Os quarteirões multiplicam-se por ruas onde as casas são baixas e o azul do céu consegue penetrar nas artérias através do generoso sol do Algarve. Percorrer esta baixa pombalina permite-nos imaginar o desenho feito a régua e esquadro.
Ao atravessarmos a Avenida da República, ladeada pelo rio Guadiana, e onde a vista sobre Espanha é privilegiada, fazemos um percurso que, outrora, foi de grande intensidade militar.
Aqui chegados, em frente ao atual edifício do Conservatório de Vila Real de Santo António, no jardim, encontramos uma placa toponímica que nos coloca em contacto com a bateria do Medo Alto. Viajamos no tempo, recuperando a história que nos conta sobre as bravuras em nome da defesa de Portugal.
A bateria do Medo Alto foi, inicialmente, construída aquando da Guerra Fantástica de 1762, tendo sido edificada sobre um promontório de areia voltado para o Rio Guadiana. Mais tarde foi reconstruída aquando da edificação de Vila Real de Santo António, sendo restaurada ao longo dos tempos, nomeadamente, nos últimos anos do séc. XVIII, por altura do agudizar das tensões políticas e militares entre Espanha e Portugal que conduziram à Guerra das Laranjas, em 1801. É bom de saber que esta bateria de artilharia contribuiu para a vitória portuguesa na Grande Batalha do Guadiana (8 de Junho de 1801). Os investigadores contam-nos, ainda, que foi nesta fortaleza/bateria que, em 1808, o governador interino de Vila Real de Santo António, o capitão Francisco Xavier Mimoso, anunciou à população a resistência contra a ocupação francesa! Durante o século XX, e tal como tantas outras estruturas defensivas, também esta bateria foi reabilitada e transformada em posto da Guarda Fiscal.
As baterias de artilharia costeiras e ribeirinhas e toda a documentação que existe sobre as mesmas revelam a importância que estas estruturas tiveram na história da arquitetura defensiva na Eurocidade do Guadiana. No que diz respeito a Vila Real de Santo António estão identificadas as seguintes baterias: Ponta da Areia, Medo do Alto, Pinheiro, Carrasqueira, Monte Gordo, Cabeço (situada no concelho de Castro Marim, mas sob a jurisdição militar de Vila Real de Santo António) e Torre Velha. Em Castro Marim conhece-se a Bateria do Registo. A verdade é que nos dias de hoje não existem, praticamente, vestígios destas importantes estruturas militares, estando algumas, inclusive, em zonas privadas.
CASTRO MARIM
Seguimos a nossa visita para o concelho vizinho de Castro Marim, localizado a apenas 4km de Vila Real de Santo António (VRSA) e a 9km de Ayamonte, Espanha. Do lado português, Castro Marim e VRSA estão ligados, também, por uma ciclovia que nos permite ter os olhos e os pulmões postos na Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António. O imponente património arquitetónico defensivo desta vila avista-se desde logo e faz-nos, imediatamente, viajar para um tempo que não é o de hoje, mas que tantas vezes é recriado. Na colina da Rocha do Zambujal, avista-se o Revelim de Santo António uma pequena fortaleza, mas de grande importância estratégica construída no início do século XVIII, no contexto da Guerra da Sucessão de Espanha (1702-1714). É fácil lá do alto, e depois de recuperarmos o fôlego perante tanta beleza, imaginarmos como ali era ponto privilegiado para controlar o tráfego do Guadiana. Vale a pena conhecer a história deste Revelim e entrar no seu interior para visitar o Centro de Interpretação do Território. Aliado à localização geográfica privilegiada com visibilidade a 360º encontra-se um miradouro virtual do concelho, sob a forma de maquete 3D, que informa e estimula a visita aos diferentes patrimónios: o histórico, natural e cultural.
Depois de uma visita virtual voltamos a colocar os pés na terra para seguir viagem até ao Castelo de Castro Marim de origem medieval. A cerca medieval que circundou a antiga vila foi mandada construir no século XIII pelo rei D. Dinis (1279) e possui um interessante pano de muralha de forma semicircular, no interior do qual se encontra o Castelo Velho com as ruínas da casa do alcaide. Ainda dentro da cerca medieval podemos encontrar as ruinas da Igreja Matriz de Santiago. Em 1277, D. Afonso III concedeu-lhe Carta de Foral com grandes privilégios para atrair e fixar a população. Em 1279, D. Dinis mandou construir a Cerca Medieval em redor da povoação, para abrigo e defesa da população e melhor cobrança dos impostos. Daqui vamos até ao Forte de São Sebastião, de resto considerado o melhor exemplo conservado do que foi o amplo processo de renovação do sistema defensivo da vila nos meados do século XVII. Este maravilhoso testemunho fortificado começou a ser construído em 1641, no reinado de D. João IV, em plena Guerra da Restauração com Espanha, demonstrando a importância deste ponto defensivo. O projeto transformou a vila na praça militar mais importante de todo o Algarve, facto reforçado pela localização estratégica face à linha de fronteira. A visita à arquitetura defensiva termina na Cerca Abaluartada, construída no século XVII para ligar o Forte de São Sebastião ao Castelo, onde podemos desfrutar da beleza arquitetónica das estruturas defensivas e do património natural de Castro Marim.
AYAMONTE
Um dos segredos para o tamanho encanto da Eurocidade do Guadiana é o facto de nos permitir vivenciar duas culturas, dois idiomas, dois países. Tanto pela ponte internacional do Guadiana, se estivermos em Castro Marim, como pela ligação fluvial no rio, se estivermos em Vila Real de Santo António, em poucos minutos estamos em Ayamonte, Espanha. Definitivamente, estar na raia é todo este mar de oportunidades de partilha de experiências multiculturais que nos entram pela alma dentro. Se hoje podemos testemunhar experiências plenas de cooperação transfronteiriça, a História desvenda-nos/relata-nos um passado de ocupações e lutas. Ayamonte foi um dos pontos defensivos mais importantes a oeste de Huelva, tendo sido o núcleo responsável pela defesa do rio Guadiana. Em tempos, onde hoje encontramos o Miradouro de Ayamonte, e a sua vista impactante, já foi o castelo de «Nuestra Señora de los Favores». Estava localizado a norte da povoação, muito perto do Guadiana, e cumpriu uma dupla missão: vigilância da costa e foz do rio, bem como o controlo de fronteira em frente ao Reino de Portugal.A sua construção remonta ao final da Idade Média, apresentando elementos arquitetónicos defensivos característicos daquele período. No século XVII foi remodelado e dotado de parede fortificada, salas adjacentes típicas do quartel e dois baluartes. Quanto aos baluarte: um orientado para Norte – de modo a controlar possíveis incursões oriundas de Castro Marim – e outro orientado a Sul, protegendo a população de Ayamonte e da foz do rio Guadiana. Ao imaginarmos aquele tempo permitimo-nos a uma viagem onde o Guadiana era o centro nevrálgico das movimentações. Junto ao antigo enclave do Castelo, encontramos o «Hornabeque del Socorro». Trata-se de uma estrutura independente, de geometria clara, muito interessante por ser um exemplo de fortificação da Idade Moderna, enquanto reforço da estrutura defensiva medieval, adaptado à evolução da técnica militar. O «Hornabeque del Socorro» foi determinante na defesa da praça de Ayamonte, representando um posto avançado do próprio castelo. Atualmente não pode ser visitado por estar inserido numa propriedade privada.
Seguimos em águas de Espanha para a «Plaza del Balcón del Guadiana» onde podemos ver as fundações de uma cerca abaluartada, onde outrora existiu um campo de artilharia, localizado no promontório da margem esquerda do rio Guadiana, em frente ao reduto de Castro Marim, Portugal. O sistema defensivo da linha espanhola, na qual Ayamonte teve papel preponderante, destacava a importância dos baluartes. Ainda é possível encontrar vestígios do «Baluarte de las Flores» e do «Baluarte de las Angustias». O primeiro localiza-se na margem esquerda do rio Guadiana, fazendo parte do sistema defensivo em oposição à praça portuguesa de Castro Marim. Embora este esteja interdito a visitas o mesmo não acontece com o «Baluarte de las Angustias» localizado na zona da cabeceira da Igreja de “Las Angustias”. Deste só resta um troço abaluartado voltado para sul e o início de duas estruturas quadrangulares. Seguimos viagem em direção ao mar até à Torre Almenara, em Isla Canela, lugar que preserva a história da intensa pirataria. Com origem no século XVI, é possível observar a robustez e solidez da sua construção de caráter militar, que serviu de defesa contra os piratas. Hoje, como podemos verificar, está muito longe da linha do mar, o que permite ter uma ideia do grau de sedimentação que a margem do Guadiana acumulou ao longo dos séculos. Aqui ficamos à beira-mar e a imaginar o que a História nos relata. As personagens e os cenários são reais e verdadeiramente inspiradores para a criação de um guião cinematográfico onde «Ação» é palavra de ordem!