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Rota do Património e da Memória Popular

Ayamonte, Castro Marim e Vila Real de Santo António preservam um impressionante património popular ligado às suas gentes. Embora existam manifestações semelhantes entre as três localidades pelo facto de partilharem um território “comum”, cada uma delas tem um importante número de elementos singulares e autóctones que falam de uma cultura diversa, cujas raízes estão no seu passado, na sua história. Ao longo desta rota podemos descobrir o mais autêntico e genuíno do território, desde a arquitetura popular, passando por ofícios tradicionais, memória da oralidade, arqueologia, gastronomia popular e folclore.

CACELA VELHA (Vila Real de Santo António)

A «Casa do Pároco» pode bem ser lugar de eleição para começarmos a nossa incursão por Cacela Velha. Este edifício é uma robusta construção quinhentista em taipa, situada no centro da povoação. Muito próximo encontramos a cisterna, construída depois do terremoto, para abastecimento e fixação da população. Antes, aqui ficava o antigo pelourinho que terá sido destruído pelo terremoto de 1755. No núcleo histórico de Cacela Velha, para além do património monumental, descobrimos um conjunto habitacional bem preservado com interessantes elementos da arquitetura popular algarvia. As casas térreas estão alinhadas em banda com telhados de uma ou duas águas, beirados duplos rematados por telhas de meia-cana, paredes de taipa, superfícies caiadas, platibandas decoradas e chaminés.

Se formos até ao Largo da Fortaleza conseguimos avistar, a nascente, o Sítio Arqueológico do «Poço Antigo». Ali, escavações que tiveram lugar em 1998, 2001, 2018 e 2019 revelaram vestígios de um bairro residencial islâmico do período almóada (1ª metade do séc. XIII), com habitações, ruas e sistemas de canalização, localizados sob uma necrópole cristã com mais de meia centena de sepulturas.

A ria e o mar revelam, por sua vez, que a pesca e a mariscagem marcaram o quotidiano e o sustento das gentes que habitaram Cacela Velha. A partir dos anos 60-70 do Séc. XX a pesca artesanal em embarcações de madeira foi sendo progressivamente substituída pela mariscagem. Atualmente, na maré vaza, continuamos a ver os mariscadores com água puxando um arrasto para recolha da conquilha. No caso da apanha da amêijoa, a extração é feita com uma pá de mariscar, cavando na lama da ria. O lingueirão é apanhado com o recurso a uma adriça.

SANTA RITA (Vila Real de Santo António)

A nossa primeira paragem em Santa Rita será no «Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela». Desde o ano de 2005 que abriu as suas portas na antiga escola primária da aldeia. É um núcleo de património da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, pertencente à Rede de Museus do Algarve, e está orientado para o estudo do património cultural e paisagístico de Cacela, com vista à sua interpretação, valorização e usufruto por diferentes públicos. No seu interior encontram-se depositadas, e em estudo, importantes coleções arqueológicas do período pré-histórico, romano e medieval da região de Cacela. O visitante pode contar com um programa regular de exposições, percursos temáticos de interpretação da paisagem, oficinas educativas e artísticas, entre outras atividades culturais.

Da aldeia de Santa Rita avistamos, a Norte, a Mata da Conceição e a Serra e, a sul, as terras do barrocal com o mar ao fundo. A aldeia preserva ainda características da arquitetura vernácula algarvia. Para além de interessantes chaminés e platibandas, destaca-se o uso da cal, de que foi um importante centro produtor.

A norte da aldeia encontramos vestígios de um conjunto de fornos de cal em alvenaria de xisto. Aí se coziam com frequência grandes quantidades de cal preta e cal branca. Uma utilizada na construção de paredes e rebocos, outra para estuques e caiação de interiores e exteriores. Segundo consta a cal de Santa Rita era a mais branca que as demais da região! É possível visitar em Santa Rita um dos fornos, recentemente recuperado.

Seguindo para nascente, encontramos, junto de uma linha de água, uma antiga fonte de planta quadrada encimada por uma cúpula. Sem água desde a construção do poço, é chamada de primitivo santuário porque, segundo a lenda, Santa Rita terá inicialmente aparecido aí. Continua ainda hoje a venerar-se a Santa das causas impossíveis, num lugar com antiquíssima ligação simbólica ao culto das águas. Próximo, encontramos o poço velho, de construção mais recente, onde a população ia buscar água e dava de beber aos animais nas pias. Era aí que as mulheres da aldeia lavavam a roupa nas pedras “de esfrega” e, mais recentemente, nos tanques.

Continuando a caminhar para nascente passamos pelo que resta de um antigo moinho de vento, reconvertido em casa de habitação, até chegarmos ao Túmulo megalítico de Santa Rita, que com cerca de 4500 anos, representa um dos testemunhos megalíticos melhor conservados da região e um elemento patrimonial de elevado valor histórico, patrimonial e científico, com características únicas no Sul de Portugal. Escavações arqueológicas em 2007 e 2008 revelaram uma câmara funerária de planta retangular a que se acedia por um longo corredor.

Em Cacela, muitas vezes em associação a sítios antigos (fontes, poços, serros, moinhos), permanecem vivas na tradição oral antigas lendas. Mouras encantadas, bruxas, lobisomens, almas do outro mundo povoam o imaginário dos medos noturnos das populações rurais. Já nas povoações piscatórias, no litoral, como em Monte Gordo, mantêm-se vivas as “pragas” mais frequentemente proferidas pelas mulheres dos pescadores (vulgarmente apelidadas de cuícas). As pragas eram quase “armas de ataque” a que se recorria nas habituais discussões de rua de antigamente. Traduzindo a exaltação perante uma qualquer situação desfavorável e na procura de uma desconcertante vingança verbal, estes dizeres pretendiam amaldiçoar o outro, numa clara tentativa de intimidação, recorrendo-se muitas vezes para isso à invocação de Deus ou das forças do céu para amplificar o temor do destinatário, tornando mais credível o efeito da praga. Veja-se alguns exemplos: “Permita Deus que tenha uma febre tão grande, tão grande, que até lhe derreta a fivela do cinto.”; “Permita Deus que aches uma carteira cheiinha de dinheiro, mas quando te abaixes para a apanhar te caia o tampo do «pêto»”.

Exemplo de praga de Monte Gordo: «Ah moça maldeçoada, havias de apanhar tante sol, tante sol, que t’aderretesses toda e fosse preciso apanhar-te às colheres com’à banha».

VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO

Na cidade pombalina de Vila Real de Santo António vamos visitar o Núcleo Museológico da Indústria Conserveira, localizado no Arquivo Histórico Municipal António Rosa Mendes, e através do qual podemos conhecer melhor os ofícios tradicionais ligados à salga do peixe. Neste museu existem testemunhos materiais e humanos da arte de pesca e da indústria conserveira em Vila Real de Santo António. Vamos aproveitar para passear pelo centro histórico da cidade pombalina e descobrir os elementos da arquitetura popular, onde as casas baixas deixam entrar, nas artérias, o sol que é sempre bem-vindo.

CASTRO MARIM

Na vila de Castro Marim podemos visitar o Revelim de Santo António para contemplar o moinho de vento que funcionava segundo as técnicas tradicionais. De resto, existem diversos moinhos nas restantes localidades da Eurocidade do Guadiana que testemunham um passado comum vinculado à moagem de cereais. No centro da vila existe o Mercado Local e Posto de Informação Turística, que, depois de ter funcionado ao longo de muitos anos com a tradicional venda de pescado e legumes, é agora um espaço de desenvolvimento e fortalecimento da oferta do comércio e do turismo local com impacto positivo na política de promoção dos produtores e artesãos locais. Neste mercado encontramos os saberes e sabores ancestrais traduzidos pela cestaria de cana, empreita de palma, tecelagem, mel, sal e flor de sal, entre outros produtos a que foi atribuída a marca «Natural.pt» (ICNF), o que lhes confere um estatuto de relevância quanto à sustentabilidade e autenticidade.

É também de autenticidade, para além de ancestralidade, que falamos quando nos damos conta que o rico património oral de Castro Marim perpetuou-se ao longo de várias gerações com a transmissão de contos e lendas sobre misteriosos episódios e personagens míticas, como o Mourinho do Forte, que chegaram até aos nossos dias.

Passeando pelas ruas de Castro Marim, onde o castelo se impõe, as típicas platibandas insinuam-se aos visitantes que vão à descoberta da arquitetura tradicional da vila. Aproveitamos para visitar a salina tradicional do Félix atualmente gerida pelo município, na vertente educacional e turística. Seguimos para o Centro de Interpretação da Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António onde nos é oferecido no seu entorno uma paisagem com inúmeros motivos para ficarmos a contemplar a natureza que apazigua e nos renova. Dentro do edifício do centro de interpretação existe uma área interpretativa sobre a salinicultura com fotografias e textos explicativos sobre esta prática tradicional. No verão, podemos ver as salinas debaixo de um sol imenso e intenso onde o calor não perdoa e os salineiros denunciam os seus efeitos com uma pele torrada e cujas mãos estão calejadas porque são elas que extraem o sal e a flor de sal com o conhecimento passado de geração em geração.

Seguimos até ao Azinhal, já na zona de serra de Castro Marim, para conhecer a queijaria experimental da ANCCRAL (Associação Nacional de Criadores de Cabra de Raça Algarvia), que se dedica à preservação da cabra de raça algarvia, uma raça autóctone característica do nordeste do Algarve. A queijaria está instalada no Espaço Multiusos, desenhada pelo arquiteto José Alegria. O Centro Multiusos do Azinhal é um edifício preparado para diversas iniciativas relacionadas com a atividade agrícola e de gado, com especial ênfase na criação de cabras e produção de queijo.

Seguimos serra adentro até à «Casa de Odeleite», na localidade de Odeleite. Esta casa conserva no seu interior a decoração original das primeiras décadas do século XX. Agora espaço de museu e onde se realizam diversas iniciativas culturais e turísticas, foi, no início do século passado, um importante entreposto comercial sendo a casa mais rica da povoação. Comercializava, principalmente, frutos secos, tais como alfarrobas, amêndoas e figos, mas também azeitonas e cestas de cana vinda dos serros à volta da povoação. Tudo isto são testemunhos de um passado comum ligado ao fabrico artesanal de produtos gastronómicos tão apreciados nos dias de hoje.

Castro Marim é um concelho de referência no que diz respeito às artes e ofícios tradicionais. O artesanato é rico e variado, demonstrando a grande criatividade das suas artesãs e artesãos. Com o passar do tempo, as várias gerações transmitiram e reproduziram os segredos da tradição perpetuando, assim, a memória das suas gentes. A herança artesanal de Castro Marim inclui têxteis, rendas, cestaria de cana e empreita. Algum deste artesanato, que quase caiu no esquecimento, persiste em sobreviver resistindo ao tempo e à industrialização. Ainda é possível encontrar quem faça, com as suas mãos sábias, rendas de bilros, cestaria em cana ou empreita de palma.

AYAMONTE

Mudamo-nos para Ayamonte e vamos visitar o tradicional «Barrio de la Villa». Trata-se do mais antigo da povoação com as ruas muito sinuosas, casas baixas de fachadas achatadas e pintadas com cal. Este bairro começa no ponto mais alto da cidade e desce até ao rio. Seguimos até ao Monumento a los Caleros construído pelo artista Pepe Gámez. Trata-se de uma homenagem ao ofício de caleiro, um saber que se transmitia de geração em geração. O processo passava por transformar a pedra caliça, branca, em cal viva de forma artesanal, aproveitando os recursos naturais dos lugares. Este ofício tradicional, que hoje se perdeu, tem uma forte vinculação com todo o território do Baixo Guadiana onde são características as fachadas brancas. O bairro da vila caracteriza-se, principalmente, por conservar a essência popular e tradicional de antigamente e a sua arquitetura. É altamente recomendável passear pelas ruas para regressar ao passado ayamontino através das pitorescas edificações. Vamos atentar nos elementos interessantes que se encontram localizados na popular rua de Galdames. O primeiro é o Poço Novo, cujos registos históricos mostram que já seria alvo de manutenção no século XVI, e onde as marcas das cordas nas pedras nos mostram que foi utilizado durante muito tempo pela comunidade local. É um testemunho relevante do que foi o bairro nas épocas passadas.

Junto ao poço encontramos um curioso azulejo com informação sobre o «Túnel del Boquerón». Entre as muitas lendas que existem ao redor da fronteira, em Ayamonte destacou-se sempre a do túnel Boquerón: um caminho sob o rio, que podia ser percorrido por um homem a cavalo, e que ligava os castelos de Castro Marim e Ayamonte. Vários deslizamentos de terra ao longo do século XX colocaram a descoberto pedaços de uma enorme passagem subterrânea, dando veracidade à história. O medo e a importância dos espaços secretos numa época em que o contrabando era mais do que um meio de subsistência fez com que muitas dessas descobertas fossem mantidas escondidas por décadas. Já no século XXI, várias investigações foram realizadas num troço do suposto túnel que passa sob a rua principal do bairro “La Villa”. Equipas de espeleólogos acompanhadas por arqueólogos exploraram parte do misterioso traçado subterrâneo para concluir que se trata, com toda a certeza, de um grande coletor do final do período medieval, que, inicialmente, recolheu a água da chuva e foi gradualmente coberto com abóbadas de tijolo, permanecendo oculto por baixo das casas de um lado da rua, que o utilizava para a descarga de águas residuais.

Desloquemo-nos até à margem do rio, onde durante a segunda metade do século XX se acumularam as indústrias conserveiras e docas, às quais chegavam constantemente barcos carregados de peixe. Ficam na memória alguns navios que foram fábricas de conservas e salgas, bem como alguns pedaços de madeira sobre os quais se apoiavam as docas onde os barcos estavam atracados. Esta margem do rio, virada para Portugal, era também o ponto de chegada de tabaco, café e outros produtos que eram escassos em Espanha naquela época. O contrabando, nas cidades fronteiriças, era um modo de vida e o sustento de muitas famílias. Também nesta zona, a meio caminho entre os distritos agrícola e piscatório, estavam os estaleiros de reparação de embarcações.

Seguimos para o centro histórico de Ayamonte, partindo da pitoresca «Plaza de la Ribera» desenhada pelo profícuo Aníbal González, e vamos submergir na arquitetura tradicional do seu epicentro. O centro urbano de Ayamonte é um dos mais relevantes da costa ocidental, sendo que um passeio pelas suas ruas nos fará descobrir a tradição e a idiossincrasia das suas gentes. Saímos do centro da cidade para nos dirigirmos ao Ecomuseu «Molino del Pintado», um cenário único que nos introduz no “Paraje Natural Marismas del Guadiana y Carreras”. Aqui encontramos um grande moinho de maré de água salgada que dedicava à moagem e utilizava a tecnologia dos moinhos hidráulicos, aproveitando a força das marés para mover as suas pás.

Com data de construção do século XVIII, foi reconstruído por D. Manuel Rivero também conhecido por «El Pintado». No interior, a partir de recursos interpretativos que oferece o museu, conhecemos melhor como se produzia de forma artesanal a farinha.

Nesta rota vamos conhecer a «Barriada de Canela» e «Punta del Moral». Formam dois núcleos populacionais pertencentes à Isla Canela, sendo bairros com muitas influências marítimas. A «Barriada de Canela»  tinha uma configuração que girava em torno de pequenas moradias cujos pátios ao seu redor serviam para alojar os trabalhadores dos galeões ou das fábricas de conserva. A cada pátio era dado o nome da embarcação mais destacada da fábrica a que pertencia. Assim, existiam os pátios de «Espanha», «Ayamonte», «Aliados» e «Peninsular». Canela teve um papel histórico de destaque durante a ocupação napoleónica, nomeadamente, servindo de refúgio da Junta Geral de Sevilha, bem como de ponto de comunicação com Portugal. Teve também um papel essencial no envio de alimentos para as tropas e autoridades protegidas na Isla de León, em Cádiz. Ainda em Canela, destacamos as festas em homenagem à Virgem «Del  Carmen» no mês de julho, cuja procissão culmina nas águas do rio Guadiana. Neste bairro são muito típicos os cultivos tradicionais conhecidos como «Navazos»; hortas situadas nos areais próximo das praias e que devido às suas características produzem verduras muito apreciadas, como é o caso das famosas «Papas de Canela».

Punta del Moral é um bairro que, em tempos áureos da indústria da pesca do atum, foi habitado por pescadores originários de Almería e de Portugal. Aqui, existem vestígios de ocupação desta área desde a época romana, tais como monumentos funerários romanos, restos de uma indústria dedicada à salga e muitos outros vestígios como o sítio subaquático localizado no estuário de Carreras. Atualmente, «Punta del Moral» é um importante núcleo turístico, com porto desportivo e belíssimas praias.

As gentes de «Canela» e «Punta del Moral» são amáveis, conversadoras e conhecedoras dos segredos do rio e do oceano. Destaca-se nestes bairros a gastronomia tradicional, principalmente baseada em peixe e marisco. Os habitantes de mais idade guardam grande sabedoria sobre os usos e costumes, sendo de grande importância o património oral destes núcleos populacionais.

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